quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Crônicas de um palhaço sem graça - 6º Episódio




Ele tinha muitas coisas para dizer.

Como numa nascente de rio as palavras brotavam como sua saliva, de maneira abundante e ininterrupta. Era tanto que de tempos em tempos ele cuspia pela janela do ônibus, que estava lotado como todos os ônibus de uma cidade grande no retirar-se do sol, verbos, sujeitos, adjetivos e predicados. Fim de tarde. Seus pensamentos corriam mais rápidos que as árvores mudas e desfocadas ultrapassadas pelo coletivo ao longo de seu percurso.

Se sentia invadido.

Seu espaço vital era engolfado pelo aglomerado de pessoas, se é que nessa situação ainda sentiam-se assim. Já tinha algum tempo que ele se sentia estranho, talvez estranhando uma delimitação nova e ameaçadora do que já era conhecido, que diante do contexto mostrava-se ainda mais frágil, o que provavelmente o fazia sentir como nunca antes essa invasão. Os outros corpos transitavam esbarravam sem autorização o seu e isso causava angústia. Não tinha nem uma música pra distrair a percepção...

Se sentia Estrangulado.

Enquanto isso suas palavras ainda brotavam e conversavam entre si. Elas se entrelaçavam e davam-se nós levando-o em vários momentos a mergulhar num súbito sufocamento sensorial onde ele encontrava um outro mundo, um mundo estritamente semântico. Eram tantas as possibilidades que as palavras não o conduziam para lugar algum, o que elas faziam era torná-lo refém da indefinição, da insegurança e da incerteza. Só acordava de volta quando outra vez alguém sem cara se esbarrava nele, alguém proveniente da multidão invasora.

Se sentia incomodado.

Estes esbarrões incomodavam. Invadiam. Mas o incomodo real surgia devido à lembrança que estes contatos lhe proporcionavam. Eles lembravam-lhe que neste momento todas estas palavras de nada serviam. O silêncio valia ouro e seu gosto era de palavras mortas. Sentia o gosto de suas palavras como nunca antes. Tinha vontade de saborear o dissabor que lhe causavam. Era estranho esse movimento. Sempre teve predileção pelos sabores agradáveis de si, mastigados e expostos de maneira abundante, através de enormes bolas de chiclete Adams sorridentes e coloridos de tempos atrás...

Se sentia silenciado.

O silêncio se fazia cada vez mais presente e necessário, afinal sentia que o momento era de saborear, mastigar e engolir a morte de suas frases e orações. Tentou adquirir novas palavras e frases no livro que trazia em sua bolsa, mas o próprio livro falava da morte e renascimento do que se era dito. Maldita Clarice. Outro esbarrão. Incomodo. Angústia.

Se sentia um pouco aliviado.

Chegou o seu ponto. Desceu e caminhou pela rua sem olhar para trás.